Por qual motivo se inveja quem se despreza?
- Carlos Castro
- 22 de jun.
- 2 min de leitura
Atualizado: 22 de out.
Recentemente, vi um vídeo “antigo” em que o prefeito de Florianópolis anunciava a nova política de doação de comida para a população de rua. A partir do novo decreto, o trabalho voluntário passa a ser restringido à Passarela Nego Quirido — nome interessante para se pensar a situação atual. Para além de tudo que possamos dizer sobre essa política higienista, algo me chamou muito a atenção.
Fui ler os comentários da postagem — um exercício que volta e meia faço — e ali vi um comentário que dizia: "Enquanto tiverem comida, café, banho, tudo de graça, nunca vão sair da rua. Ganham tudo. Por que vão sair da rua?".
Esse tipo de pensamento não é incomum. Sempre que há uma postagem desse tipo, há também esse tipo de comentário — com várias curtidas e replicado de diversas formas. Também já ouvi isso da boca de parentes, amigos e desconhecidos.
A minha escuta sempre vinha no sentido de: morar na rua não é uma situação fácil, mesmo que alguns sujeitos tenham encontrado nela uma possibilidade. Ao andar pelo centro não é incomum ver situações de desamparo, de gente catando lixo, de gente comendo o que retira dessas sacolas enquanto as pessoas passam. Enquanto as pessoas passam, já vi gente dormindo no meio da calçada, como se tentassem, num esforço tão grande, ser vistas, e, num esforço tão grande quanto, pelos que passam, não serem vistas.
A gente pode pensar que, nesses casos mais críticos, pode haver uma questão, talvez um “probleminha”, uma psicose — e que, dessa forma, possamos encontrar um certo lugar compreensível para essa situação tão degradante.
Contudo, na maioria dos casos com que cruzei, no olhar no olho, há uma troca, como se falássemos a mesma língua. E o que vejo é uma tristeza — dessas que te lembram que também existem alegrias.
No entanto, o comentário desse rapaz, que insiste em se repetir em outros, me faz questionar se ele vê a mesma coisa que eu vejo.
Vi outro comentário, e ele me fez perceber que essas questões são minhas, que eu estava me escutando — e não escutando o que se comentava ou falava.
Esse comentário dizia: “Se está tão bom assim, por que não vai morar na rua?”
E é sobre isso. É sobre o que seria “bom” para esse sujeito.
O comentário do primeiro sujeito mudou o sentido: “Ganham tudo de graça.” O básico está tão difícil. E a pergunta que me faço agora, ao ler esse tipo de comentário, é: por qual motivo se inveja quem se despreza?
A psicanálise, por um lado, nos permite uma leitura dessa estrutura de afeto. Quando alguém diz “ganham tudo”, diante de quem nada tem, algo do gozo é atribuído ao outro, ao “miserável”. Trata-se da fantasia de que o outro goza demais, mesmo na miséria, mesmo no lixo.
Na sociedade regida pelo imperativo do desempenho e pela fragmentação dos laços, sustenta-se a ilusão de que ESSE outro à margem não nos constitui como sujeito.
Somos como formigas andando sobre uma fita de Möbius: desejo e realidade são avessos de um mesmo caminho, em que um leva ao outro — e não percebemos.


