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Não há relação sexual

  • Foto do escritor: Carlos Castro
    Carlos Castro
  • 4 de nov.
  • 4 min de leitura

Caros amigos, não há relação sexual. Essa afirmação de Lacan revela a sexualidade como uma das dimensões fundamentais da prática analítica, uma dimensão cuja entrada perturba o ser falante e desestabiliza o suposto equilíbrio da linguagem.


Antes de Freud, a sexualidade era reduzida à genitalidade. Compreendia-se o desenvolvimento sexual humano como um percurso linear, que teria início apenas na puberdade e culminaria no coito heterossexual. Essa visão sustentava a ilusão de uma complementaridade natural entre os sexos, como se o homem estivesse biologicamente programado para encontrar a mulher, e vice-versa. Essa crença é o que a psicanálise desvela ao afirmar: não há relação sexual.


Essa formulação, longe de ser uma negação do encontro entre os corpos, aponta que não há encaixe simbólico entre os sexos. Não existe um instinto que garanta a completude entre homem e mulher. Ou seja, para o ser falante, a sexualidade não é composta por um objeto fixo que sirva de destino à sua energia (pulsão). Tudo pode ser sexualizado, e nenhuma coisa será capaz de satisfazer o ser falante. A linguagem atravessa a sexualidade humana, e é nela que essa impossibilidade se torna mais latente: na impossibilidade da palavra dizer o todo da coisa. Em outras palavras, a sexualidade humana é atravessada pelo mal-entendido. Assim, Freud e Lacan revelam que a sexualidade não é uma questão biológica, mas simbólica; não uma história genética, mas uma história de vida.


Dizer que “não há relação sexual” constitui uma das maiores feridas narcísicas da humanidade, pois implica reconhecer que não há uma sexualidade “normal” nem uma harmonia natural entre os corpos. Cada sujeito se constitui a partir de um modo singular de gozo, que deriva de sua história e de sua inserção na linguagem. Repito, o ser falante é aquele cuja libido pode ser investida em qualquer objeto, e é por isso que tudo pode ser sexualizado, embora nem tudo seja sexual.


A sexualidade, para a psicanálise, nasce da sedução. A massa de carne que virá a ser um ser falante é, a partir do Outro, introduzida na linguagem — um movimento que é, ao mesmo tempo, sexual e traumático. O filho é efeito da sedução parental e, portanto, já é marcado pela sexualização e pelo trauma. O trauma, por sua vez, excede a sedução: é o acontecimento contingente — contingente no sentido de que é, mas poderia ser outra coisa — que desestabiliza o sujeito, um golpe que rompe seu equilíbrio e o obriga a buscar novas formas simbólicas de assimilação.


O trauma é, portanto, uma causa acidental, e não necessária. Diferente das causas biológicas, o trauma revela o que há de singular e imprevisível na constituição do sujeito. A psicanálise se interessa por essa causa simbólica, por aquilo que se inscreve como encontro faltoso, como desencontro — o mesmo desencontro que sustenta o “não há relação sexual”.


Nessa perspectiva, o analista não trabalha com previsões nem com determinismos. Ao contrário da ciência positivista, que parte de causas conhecidas para prever efeitos, o analista escuta os efeitos discursivos e, a partir deles, reconstrói uma causa. É um trabalho que se realiza no campo do simbólico, não no da biologia ou da farmacologia. Como diz Roberto Harari “Não se cura um símbolo com um remédio”.


A pulsão, tal como Freud a define, é um movimento que não tem objeto fixo. Ela se organiza em torno de quatro elementos (fonte, pressão, objeto e meta) e de quatro destinos possíveis, que expressam sua parcialidade. Lacan retoma essa ideia para mostrar que a pulsão não busca um objeto a ser incorporado, mas o bordeia: ela gira em torno do objeto a, o objeto causa do desejo, sempre perdido. Por isso, a pulsão é parcial e nunca total, ela se fixa nas zonas erógenas, regiões de borda (boca, ânus, olhos, ouvidos) que abrem e fecham o corpo ao mundo. As diferentes pulsões (oral, anal, escópica e invocante) revelam a multiplicidade de modos pelos quais o sujeito busca uma satisfação que nunca é plena. É nessa repetição do impossível que o desejo insiste.

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A repetição, portanto, não é o retorno do mesmo, mas a insistência em reencontrar o que nunca se teve. É nesse sentido que a psicanálise se opõe ao “todismo” imaginário, à ideia de completude. O sujeito repete, não para encontrar o idêntico, mas para sustentar o circuito da falta que o constitui.

A compulsão à repetição e a pulsão de morte, longe de indicarem um instinto destrutivo, apontam para o movimento próprio da vida psíquica: a tentativa incessante de simbolizar o trauma e de dar sentido ao que se perdeu. A transferência, nesse contexto, é uma das formas privilegiadas em que o sujeito repete — repete o fracasso, repete o desencontro, repete o “não há relação”.


Em última instância, o “não há relação sexual” é o nome do trauma inaugural do ser falante. É o reconhecimento de que a linguagem nos separa do instinto e de que o desejo é, estruturalmente, sem objeto. Desejar é estar em falta, e é essa falta que nos constitui como sujeitos. O amor, assim como o trauma, pertence ao domínio da contingência: um encontro que poderia não ter acontecido, mas que, ao ocorrer, transforma radicalmente aquele que ama.


Estar em cultura, portanto, é habitar o mal-estar do desencontro. É viver sob a marca de uma impossibilidade estrutural da linguagem: a de que não há relação sexual. Ainda assim, seguir desejando, criando e simbolizando essa falta que nos faz.


FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos.

HARARI, Roberto. El torbellino en La palabra.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.


Fotografia de Miguel Rio Branco
Fotografia de Miguel Rio Branco

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