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Identidade de vil

  • Foto do escritor: Carlos Castro
    Carlos Castro
  • 19 de jun.
  • 3 min de leitura

Atualizado: 31 de jul.

POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Lendo O tempo e o cão, livro de Maria Rita Kehl, no contexto do cartel sobre a experiência do tempo, as palavras de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, em Poema em linha reta, me ressoam como um aviso do tempo.


O eu lírico se insurge contra a ideia heroica da virilidade moderna, de potência, recusando-se a participar da ficção do sucesso. Escrito entre 1914 e 1932, o poema se situa justamente no momento de emergência da psicanálise, no limiar da virada do século XIX para o XX, quando Freud revela o sujeito cindido do inconsciente e a impossibilidade da completude imaginada pela modernidade. É nesse contexto que o eu lírico de Pessoa, na figura de Campos, se apresenta como alegoria de um resto diante das esperanças fracassadas de alienação total no Outro.


A voz melancólica do poema, que denuncia o vazio por trás dos ideais de perfeição, antecipa a clínica do mal-estar contemporâneo. Trata-se do sujeito esmagado sob a exigência de gozo, como um prelúdio dos ideais de performance e de adequação identitária que marcam o sujeito hoje.


Kehl, herdeira da melancolia benjaminiana e do fatalismo, propõe pensar a depressão como o sintoma social da contemporaneidade, diferenciando-se da melancolia freudiana, que desloca o significante para o interior da vida familiar por meio do complexo de Édipo. O que no marco do séc XIX nos força a abandonar a melancolia enquanto sintoma social.


Álvaro de Campos, depressivo de hoje e sintoma do nosso tempo, cansado de “semideuses” e da “procura de lugar nisso tudo”, ecoa uma reflexão de Vladimir Safatle ao evocar uma possibilidade de tratar o nosso tempo como o tempo da partilha das colisões. Um tempo de falhas compartilhadas, em que o laço não se sustenta mais na completude ilusória de um Ideal, mas na partilha de restos, no confessar da vileza. Diante dos discursos identitários que prometem um lugar estável ao sujeito, a psicanálise propõe um deslocamento ético. Trata-se de passar do fazer como, colado à imagem especular e normativa, ao fazer com, onde a falta, o tropeço e o mal-entendido são reconhecidos como operadores do desejo. Não se trata de buscar um Outro que diga o que fazer, mas de sustentar, junto a outros, o trabalho de se escutar.


Pois sim, Álvaro de Campos, há gente neste mundo. Não és só tu, vil e errôneo nesta terra.


Fernando Pessoa
Fernando Pessoa

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